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Segurança, Defesa e Geopolítica

Totalitarismo digital: a restrição de direitos através da tecnologia da informação

Por Redação DefconBR, 05 de janeiro de 2023.

Até meados do século XX alguém poderia passar uma vida inteira ignorando o governo de seu país, se assim o desejasse. Registros de identidade eram realizados pela Igreja nos batismos e falecimentos, sendo as cédulas de identidade inexistente em alguns países, como a Inglaterra, até os dias de hoje. A última vez que o país britânico teve uma identidade nacional foi durante a segunda guerra mundial, sendo abolida logo em seguida. Uma tentativa de reintroduzir a identificação obrigatória em 2010 sofreu forte oposição da sociedade e de grupos organizados como o No2ID que se declarava contra o governo-base de dados. A controvérsia sobre a obrigatoriedade de um documento de identificação, ressalvadas as óbvias dificuldades de comprovação em caso de necessidade, reside na dúvida quanto a finalidade do uso que o governo fará dos dados obtidos de seus cidadãos.

No restante da Europa e na quase totalidade do mundo as pessoas são identificadas por um número de registro, que evoluiu ao longo do tempo de cartões de papelão sem foto para cartões com foto, daí para cartões plásticos e, agora, o registro sob a forma digital tem se popularizado pelo uso direto nos aparelhos telefônicos móveis. As vantagens são conhecidas e os governos aderiram ao mundo digital em busca de eficiência, redução da burocracia, otimização de recursos e processos de trabalho.

Civitas é o termo latino para a palavra cidadania, detenção de direitos, exercício de poder e mecanismo de representação. A popularização da internet trouxe um adendo novo ao conceito: digital, um complexo de sistemas, dispositivos e processos que empregam a tecnologia da informação como ferramenta desses aspectos citados de poder e representação de forma que uma quantidade cada vez maior de cidadãos tem se conectado aos aplicativos mais diversos em busca de serviços governamentais e participação cívica.

A novidade que veio dar à praia é que a ferramenta tem uso dual e o que o martelo que prega o prego é o mesmo que acerta o dedão. São cada vez mais comuns as denúncias de que o acesso direto de governos sobre seus cidadãos tem sido utilizado como instrumento de controle por algum déspota de plantão.

O caso mais recente é o incidente na cidade de Urumqi, na região de Xinjiang, conhecida por sua população majoritariamente muçulmana e de identidade mais próxima dos povos da Ásia Central que dos chineses tradicionais do leste. O caráter separatista dos uigures pode ter sido o motivo da província ter sofrido as mais longas e severas medidas da chamada Política de Covid Zero da China. Vídeos que circulam na internet mostram, por exemplo, pessoas saindo literalmente correndo de uma loja de departamentos onde um cliente havia sido testado positivo para Covid por um fiscal sanitário em um procedimento aleatório. O motivo da correria é que a medida aplicada pelo governo nesses casos é o trancamento da loja com todas as pessoas dentro até que as autoridades entendam que aquele grupo não representa mais risco de contaminação a terceiros. Há registros na região de Xinjiang de proibição de sair às ruas por períodos de até 100 dias e cenas de suicídios, supostamente causados por depressão do confinamento tem surgido em vídeos contrabandeados para canais do ocidente.

Em 24 de dezembro, um incêndio eclodiu em um prédio em Urumqi causando a morte de 10 pessoas. Embora as autoridades chinesas tenham negado culpa e alegado que teria havido falha dos moradores nos procedimentos de evacuação, os vídeos disseminados na internet permitem supor que as dificuldades das equipes de resgate e das pessoas foram advindas do fato dos prédios estarem trancados. Protestos eclodiram imediatamente em várias cidades mas um detalhe acendeu o alerta contra a repressão: o status sanitário das pessoas que combinaram reunir-se para o protesto foi alterado em seus aparelhos de telefone celular para a condição vermelho, o que impede que a pessoa se locomova pela ou entre cidades.

Outra característica dos protestos é a exposição de folhas em branco nas manifestações, que em sido chamadas de Revolução A4, em virtude de ninguém saber que frase ou manifestação pode levar à prisão, como informa matéria do site português Observador, aqui. O temor é demonstrado a despeito da garantia constitucional que os cidadãos chineses tem, prevista no artigo 35 da Constituição da República Popular da China, de liberdade de expressão, imprensa, reunião, associação, procissão e manifestação.

Está cada vez mais evidente que o cidadão não tem como fazer frente ao Grande Irmão do século XXI, um Big Brother plenipotente que George Orwell não teria condições de dimensionar. A professora de ciências políticas Amy Zegart, da Universidade de Stanford, esclarece o cenário disruptivo em seu livro Spies, Lies and Algorithms através de quatro fatores: inteligência artificial, conectividade de internet, computação quântica e biologia sintética.

Segundo a cientista política, a inteligência artificial está transformando tanto o comércio como o setor de defesa de uma forma que pode desestabilizar a ordem social dos países e alterar a distribuição global de poder. Ao mesmo tempo a conectividade está superturbinando a política, a internet das coisas está espalhada por milhões de brinquedos, carros e aplicativos que trazem embutidos vulnerabilidades cibernéticas ao passo que os algoritmos do Facebook estão decidindo que notícias as pessoas irão ler, influenciando como elas pensam e viabilizando a manipulação da população. A supremacia quântica, anunciada pelo Google em 2019 pode não ser tão benéfica quanto se anunciou na medida que joga por terra toda a tecnologia de criptoproteção utilizada por pessoas e estados. E a biologia sintética está habilitando cientistas a reestruturar organismos vivos e criar outros novos, inexistentes na natureza, que podem ser utilizados como aprimoramentos na agricultura e medicina ou como novas armas de guerra.

A pandemia do COVID-19 acelerou muitas dessas tendências, tornando online economias e sociedades inteiras e incrementando o uso das tecnologias de biovigilância como bijouterias inteligentes que rastreiam sintomas e análise de dados que podem identificar por que cômodos de um prédio uma pessoa infectada circulou e se ela estava usando máscara.

Amy B. Zegart, spies, lies and algorithms

Tamanho poderio não deixará de integrar o arsenal de elites arbitrárias ao redor do mundo. O rastreamento de telefones móveis, a identificação de críticos do regime através de programas de análise de vínculos e as sanções de desmonetização e exílio digital são apenas a ponta do iceberg totalitário que flutua no mar azul da tecnologia.